quinta-feira, 19 de abril de 2012

Quando a mídia veste a camisa de uma multinacional petroleira

Oscar Guisoni - Especial para Carta Maior

Madri - A nacionalização da companhia petroleira YPF, realizada pela presidenta argentina Cristina Kirchner, conseguiu mobilizar a imprensa espanhola que transformou o caso em uma espécie de “causa bélica” de inéditas proporções, que inclui a proliferação de comentários depreciativos sobre os argentinos e uma série de lugares comuns sobre o movimento político que governa em Buenos Aires, ao qual acusam de “peronismo fascista”, “ladrão”, “espoliador” e “terrorista”, entre outras coisas. Ao tropeço de certa imprensa de direita que no sábado dava como certo que a Argentina não nacionalizaria a empresa, soma-se um coro de colunistas em diversos programas de rádio e televisão que pede ao governo que aplique sanções urgentes como represália.

Para entender melhor qual é o clima é preciso recorrer aos humoristas. Forges, o reconhecido chargista do jornal El País, resumiu essa situação com uma charge extraordinária na qual aparecem alguns homens de casaco azul (uma óbvia alusão ao Partido Popular, no governo) e óculos escuros de mafiosos gritando freneticamente, enquanto dois cidadãos observam a cena e um afirma: “Algo está ocorrendo quando se confunde petroleira com pátria” – ao que o outro responde com um lacônico “sim”. O semanário humorista “El Jueves” foi ainda mais longe e destacou: “Argentinos: primeiro roubam tua noiva e depois não querem te dar seu petróleo de presente”.

Mas a imprensa séria foi a que se transformou, sem dúvida, na grande defensora da causa Repsol, quase sem exceções. O ultraconservador matutino La Razón labuzou de petróleo negro sua capa para ressaltar em letras catastróficas: “A guerra suja de Kirchner”. Ao mesmo tempo, seu correspondente em Buenos Aires, Ángel Sastre, escreveu artigo intitulado “A viúva negra e as hienas peronistas”, no qual não economizou adjetivos para qualificar a presidenta Cristina Fernández, chamando-a de “besta parda” enquanto fala de sua “malévola” conversão em um monstro pior que Evo Morales e Hugo Chávez. Cristina é descrita como uma presidenta rodeada de “pistoleiros” como o secretário de Comércio, Guillermo Moreno, e por “larápios corruptos de primeira ordem que manejam as províncias como senhores feudais”, numa alusão aos governadores peronistas que governam as chamadas províncias petroleiras que supostamente teriam se atirado “sobre a Repsol como hienas”. O mesmo jornal, no sábado passado, havia destacado em manchete “O governo fala duro com Kirchner”, em alusão às ameaças do chanceler García Margallo ao governo argentino antes da nacionalização.

O supostamente progressista El País não foi menos belicoso e, em um editorial intitulado “Espólio consumado”, acusa a Argentina de ir “mais além da ruptura circunstancial da segurança jurídica pressuposta em um país democrático” para terminar concluindo que “a expropriação da YPF é uma fuga para a frente que coloca a Argentina à margem da comunidade econômica internacional”. O monarquista ABC vai ainda mais longe, afirmando com grandes letras na capa: “Espoliação”, título acompanhado de uma foto de Cristina Kirchner gritando. Em suas páginas internas pode-se ler uma coluna do diplomata Javier Rupérez que fala “desta incômoda, mal educada, imprevisível e insolente Argentina que o casal Kirchner configurou segundo sua imagem e semelhança”, enquanto outro colunista, Tomás Cuesta, situa a “Argentina em um lugar de destaque no hit-parade dos estados piratas, entre Somália e Venezuela”.

Mas o prêmio máximo vai sem dúvida para o irritado Federico Jímenez Losantos, colunista do diário conservador El Mundo e da rádio COPE, propriedade da Igreja Católica. Segundo Losantos, Cristina Kirchner, a quem chama de “senhora por trás de um botox” e “chefe do bando” tem “essa coisa indigenista cultivada pelos montoneros”. Jiménez Losantos acredita que “os peronistas são um perigo público e privado” que pertencem a “um partido fascista” e seu líder é uma “montonera militante da extrema esquerda terrorista dos anos 70; o pior do pior”. O ministro da Indústria, José Manuel Soria, contribuiu para esse clima ríspido acusando os argentinos de ser “gente pouco confiável”, tratando de dissimular seu equivocado otimismo quando no fim de semana afirmou que o processo de nacionalização havia sido bloqueado e que o governo argentino havia revisado sua decisão ante à decidida pressão espanhola.

A única exceção a esse coro guerreiro, que incluiu vozes contra a Argentina desde o PP no governo até o Partido Socialista na oposição, foram os deputados da Esquerda Unida que consideraram vergonhoso que o governo defendesse desse modo os interesses de uma empresa privada enquanto pouco ou nada faz para defender o estado de bem-estar social que afeta todos os cidadãos. E o jornal de esquerda Público, que publicou algumas colunas de opinião analisando o comportamento bélico dos outros meios de comunicação, como a do catedrático Juan Torres López, que afirmou: “a única maneira de entender as razões que provocam o furor com que o governo espanhol, os meios de comunicação e tantos cronistas de toda laia defendem a Repsol não pode ser outra que comprovar a ampla relação de ex-autoridades do Estado, incluindo atuais ministros, que já estiveram em sua direção, as milhares de páginas e horas de publicidade da empresa que financia esses meios e quem sabe que outro tipo de influências mais inconfessáveis e inconfessadas”.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=19979

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